Achei o texto, que afinal nunca foi publicado, e resolvi postar aqui neste blog.
Um Culto no Cinema Palácio
Ao invés dos espadachins de
“Scaramouche”, passam engravatados, solenes, sérios, imagino, pastores. Há um
pequeno púlpito e um deles ouve o relato de suas senhoras. À minha direita, um
senhor, humilde, de joelhos, gesticula para ninguém. Parece desesperado em suas
preces. Chega outro. Primeiro, ajoelha com a cabeça no assento e ali fica vários
minutos. Outros fazem a mesma coisa. Poderia estar em um filme de Buñuel,
daquelas sessões inesquecíveis às 22.30, sextas feiras. Mas não. Está chegando
a hora. O Palácio é grande e está quase lotado. Nos últimos tempos não
conseguia isso. Ligam o sistema de som. Lá do alto, dois holofotes estão
ligados e conforme a intensidade das orações aumentam e baixam. Ilusão. Truque.
Como no cinema. Um piano toca uma melodia. O pastor pede a todos que estendam
os braços para o alto. Obedeço mas, abrigado pela multidão, baixo. A prece
começa lenta. Todos acompanham, não sei se repetindo as palavras, ditas
lentamente, ou repetindo seus pleitos. As vozes vão ganhando volume. O pastor
também acelera e de repente, canta um trecho da música. Todos acompanham. Ele
sabe o break, pára e reinicia a oração. Agora fala dos desvalidos, dos que
comem o pão que o diabo amassou, dos incompreendidos, dos que não têm chance,
dos que vivem à margem, sem dinheiro, com as dívidas, as ameaças. E todos se
encontram. A voz do pastor é teatralmente chorosa, ele diz o que todos sentem.
Desespero. As vozes aumentam de volume, os holofotes aumentam a intensidade,
estão quase gritando, chorando e vem mais um trecho da canção. Intervalo.
Alguns enxugam os olhos. À minha frente, um homem forte, bíceps à mostra, não
baixa os braços, firmes, olhando para o alto (os holofotes?), clamando. Os
pastores passam reparando em quem está emocionado. Futuras vítimas? Como em
“Amarcord”, de Fellini, onde a Gradisca está à disposição do príncipe.. Noto,
pelo corredor lateral, a entrada de um homem forte, pasta tipo de representante
de remédios. Vai para o interior do palco, onde antigamente era a saída pela Ó
de Almeida. Rápido, retorna por dentro do palco, segurando sua Bíblia. Sem
titubear, pega o microfone do pastor que até então chorava e comovia. Com uma
voz forte, firme, transforma aquilo que era um choro, uma lamentação em uma
certeza. “É Hoje! Hoje tudo vai mudar, hoje tudo vai acontecer, hoje tudo vai
se transformar!”. Imediatamente as pessoas entram em transe. Gritam “é hoje!” e
estão confiantes. Os holofotes piscam, o pastor fala forte, as ovelhas estão
domadas. Lembro as bruxas de “McBeth” o filme de Polanski, sobre Shakespeare. A
energia está no ar e ele, ciente do seu domínio, pega o break da canção que não
cessa e canta, dando uma esfriada na galera. Bacanagem. Cessa a música. Ele vai
começar outra jogada e de repente, lembra de “homenagear” os que pagam dízimo.
“Correndo, vamos, venham deixar o seu dízimo”. Correm para pagar. Não têm medo
de mostrar ternos bem cortados, poder. Afinal, Deus lhes deu a riqueza por
serem fiéis. Não é isso o que todos querem? Então façam como eles. Paguem para
receber em dobro. Achei que era suficiente. Saí discretamente, mas alguns
olharam reprovando. Sair naquele instante? Paciência. Peguei um folheto, do
Grupo Jovem, contra as drogas e perguntando se meu problema é espiritual,
familiar ou sentimental. Há reuniões aos sábados e domingos. Agora reparo, na
saída, uma cartolina onde está desenhada uma máquina registradora e pelos
lados, sacos de dinheiro como aqueles do Tio Patinhas. É a “Corrente dos
Empresários”, às segundas feiras, não lembro o horário. Vou saindo, uma mão me
pega o ombro. Assustado, penso “pronto, o Edyr Macêdo mandou me pegar”. Não,
era um pastor, lógico, ninguém ali passa despercebido, me perguntando se havia
gostado, a que horas havia chegado e se voltaria. Perguntei pela sessão da
Sexta feira, meia noite. Agora não tem mais. Pensei comigo que as sessões de
cinema, aqui em Belém, também não deram certo. Disse que apareceria. Lá dentro,
o clima fervia. E no térreo do Palácio do Rádio, lado a lado, várias lojas de crédito com vendedores disputando clientes, que depois vão
se ajoelhar. O Cinema Palácio não merecia isto que todos nós deixamos
acontecer como se não fosse com a gente. Imagino que ali, quando fecham a porta,
devem aparecer os espectros de Fellini, Buñuel, Scaramouche, os grandes
personagens, grandes diretores, se batendo, andando trôpegos em várias
direções, perguntando “o que aconteceu?” ou “por quê???”. Não há resposta. Mais
um já teve.
Cultura, quanto vales? Aqui em Belém, imagino que nada.
O Cinema Palácio virou Igreja Universal de Deus e salvo algumas reclamações
após as transações serem confirmadas, nada se fez. Todos nós fizemos de conta
que não era conosco. Cinema é cultura. Claro que também tem sua metade
comércio. Mas é Cultura, totalmente, em sua parte. A falta de
público no Palácio e nos outros cinemas decorreu principalmente da ausência de
Cultura na cidade. Secretarias de Cultura, Estadual (hoje completamente perdida
em sua finalidade) e Municipal não atuam. Hoje viceja o beber e pular até cansar.
Ninguém quer pensar. Se vão ao cinema, teatro, música, perguntam se é drama
porque já bastam os seus. Nenhum órgão público se apresentou a comprar o
Palácio para mante-lo Casa da Cultura, tão bonito e luxuoso para shows, teatro,
enfim. Nem os empresários que hoje só pensam em dez mil pessoas bebendo e
pulando até cansar, desde que gastem, desde que paguem seu dízimo e não pensem,
não tenham cultura a não ser para saber o que significa a palavra “abadá”. Nós, jornalistas, artistas,
deveríamos ter feito barricadas, gritar por aí para salvar esta casa que era
nossa e deixamos levar. O pessoal da Igreja faz sua parte e não temos nada com
isso. Vai lá quem acredita e é trouxa, achamos. Direito de ir e vir. Mas a
Cultura perdeu, com certeza. Experimentem entrar no Palácio, hoje. Dá vontade
de chorar. O que fazemos conosco?
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