segunda-feira, 13 de outubro de 2014

QUE A SANTA CHEGUE QUANDO TIVER DE CHEGAR

Nunca perdi um Círio. Meus pais sempre moraram em um prédio que fica no trajeto da procissão e não tive até hoje qualquer compromisso que me impedisse de assistir o passeio de Nossa Senhora de Nazaré no segundo domingo de outubro. Não que seja católico fervoroso. Prefiro me considerar cristão, o que considero algo bem difícil de seguir. Já presenciei Círios em que a Santa chegou muito cedo e muito tarde. À medida em que o tempo passa, aumenta a multidão. Aumenta o público na Trasladação, considerada por muitos o Círio da classe média, pela ausência do sol e seus efeitos. Estar na casa de meus pais, recebendo amigos e parentes virou uma tradição. Estar com meu pai, que adorava o Círio. Fez algumas músicas a respeito, uma delas “Belém está tão bonita, é o Círio que chegou, vejo caras, vejo gente, gente que nem sei quem é. Belém está diferente..” Hoje moro no mesmo prédio, no centro da cidade e percebo o clima diferente, próximo ao segundo domingo de outubro. Há uma eletricidade no ar. Sotaques diferentes. Pessoas que olham para os prédios com curiosidade. Com meu pai, acompanhei algumas vezes, até a sede do Clube do Remo, onde parávamos para um Guarasuco e ele conversar com amigos remistas. Em casa, feliz, cercado, contando anedotas. Bebida, somente depois dEla passar. E quando acontecia, lá vinha violão e começava a cantoria.
Li no face alguém comentando que antigamente, sem o serviço sonoro em todo o trajeto, era um Círio mais silencioso, mais concentrado, ouvia-se os pés das pessoas caminhando, pouca conversa. Sim, acho que sim. Este ano, felizmente, deu um bug no tal serviço e não o tivemos. Mas aumenta cada vez mais o número de “homenagens” no formato de cantores interpretando músicas alusivas à Nazica. Confesso, sou um dos culpados por isso. Eu e meu irmão Janjo, pouco depois da inauguração do shopping Castanheira, por encomenda do grupo Líder, trouxemos Leila Pinheiro para cantar em frente ao Hilton Hotel. Hoje o Círio corre o perigo de se tornar uma “micareta”. Há vários pontos de vista. Sempre nos queixamos do desprezo da grande mídia, no Sudeste, a não dar a devida importância ao acontecimento, com dois milhões de pessoas nas ruas, preferindo as 200 mil de Nossa Senhora Aparecida. Da falta de um número maior de turistas, afinal, ainda hoje, turista, mesmo, é aquele paraense que há muito mora fora e vem matar as saudades. É uma área de péssimos resultados, essa. Mas também torcemos o nariz quando o marketing se impõe, seja em camarotes patrocinados por grandes empresas, onde é necessário vestir uma camisa (abadá) para entrar, seja quando Fafá de Belém traz alguns convidados, é verdade, a maioria de baixíssima visibilidade nacional, para uma tal de varanda. Sei que da parte de Fafá, a idéia é exatamente trazer pessoas formadoras de opinião para disseminar a importância do Círio. Há várias cotas de patrocínio, o Governo entra, mas não me interessa aqui saber se ela ganha algum pelo tempo e imagem investidos. Enfim, queremos a popularização do Círio, mas ao mesmo tempo queremos que Nazaré seja respeitada, o ritual, a cerimônia, que não seja vista como carnavalesca, atração meramente turística. E aí vem a tal Diretoria da Festa, com suas decisões complicadas. Há iniciativas muito boas como a evangelização através das imagens que percorrem as casas. Mas há outros detalhes a considerar, exatamente no que junta o aumento da fé e o crescimento da cidade. Frequentei o Arraial de Nazaré enquanto pude. Grandes lembranças. Mas a cidade cresceu e engoliu o Parque de Diversões e Bares onde reinava Edna Fagundes e seus boleros mortais. O Parque atual é inseguro e caro. Mas ainda há quem, do interior, venha visitar Nazaré na Basílica ou ali na Praça e depois vá brincar. O que precisa ser remodelada é a cerimônia de encerramento, na noite de domingo. Antigamente, os foguetes eram estourados ali mesmo, em frente à Basílica. Depois, ao lado. E agora, temos a proibição do Ibama, que tem lá suas razões, mas principalmente, há hospitais e idosos que não merecem ter ouvidos agredidos por algo que, no fundo, no fundo, é queimar dinheiro. A praça e o parque viram uma bomba pronta a estourar. Ladrões, agressões, há de tudo. A cidade cresceu. Precisa mudar. E precisa chegar tão cedo o Círio? Parabéns à competência, mas o Círio é mais do que isso. É um ritual. A Santa passa, nos descabelamos, choramos, pedimos, depois nos confraternizamos e esperamos o almoço. Quem acompanha o Círio, também, espera chegar no final da manhã para voltar para casa, tomar um bom banho e almoçar as comidas típicas. Parem de ser tão modernos e competentes. Eu, distante, confortável, assistindo, preferia a corda antiga, com dois lados, mas recolho-me à minha ignorância após as explicações do engenheiro Charone. E Nazaré passa depressa, ao comando de apitos, ufa ufa, vamos chegar cedo. Nada disso. Que chegue na hora em que tiver de chegar e pronto. Círio começa quase uma semana antes, quando recebemos parentes no aeroporto, saímos para festejar, Círio Fluvial, Arrastão do Pavulagem, Trasladação, Chiquitas, Círio e almoço.

Neste domingo, quando a multidão acabou de passar, desci à Presidente Vargas. Havia um ar rarefeito no asfalto. Passara um tornado. O chão tinha uma mistura de copos de plástico, papeis brilhosos, confete e algo difícil de explicar, talvez resto de pele, resto de gente que passou ali pisando e repisando. Resto de pensamentos, resto de energia. Ao lado, as mulheres de um coral se despediam. Alguns garis se posicionavam, carros eram contidos por guardas e lá na frente, ia aquela parede humana, acompanhando Nazaré. Ainda no dia seguinte a Presidente Vargas ainda estava se recuperando. Como um vácuo. E já estamos com saudade dEla. Até para o ano, Nazaré.

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