sexta-feira, 14 de abril de 2017

A TRAVESTRISTE

Quando o mundo discute a questão da aceitação normal na sociedade dos trans e demais siglas, penso que conheço o travesti mais triste, ou talvez nem seja isso e eu apenas tenha criado um personagem a partir do pequeno contato que tive, e também por vê-la nos arredores de meu prédio, a partir de sábado e às vezes ainda no domingo. Pensei nela e resolvi escrever alguma coisa ao passar de carro, domingo, meio da manhã, pela Riachuelo e encontrar Blake e ela, discutindo. O Blake vocês conhecem, um moreno baixinho, meia idade, grisalho, que certamente por conta de poliomielite na infância, tem duas pernas prejudicadas. Por seu andar, o apelido deveria ser “Break”, por conta daquela dança nos anos 90, talvez. Mas como a pronúncia fica difícil, acabou sendo Blake. Como mantêm-se vivos esses personagens, confesso que não sei. Consumindo o que consomem, não comendo o que deveriam comer, dormindo ao relento, sujeitos a todas as intempéries, por muito menos eu já estaria em uma UTI. Mas estava falando do, vamos chamar de “Travestriste”. Infelizmente não sei o nome dela. Uma vez, estava andando, sábado, pela manhã, na Praça da República, com meu golden Antonio e ela estava lá, lânguida, estirada em um dos bancos. Mexeu comigo por dever de ofício. O rosto melado da noite, olhos vermelhos, cansados, um bafo de bebida terrível, foi pelo costume. Ao agradecer e recusar, ela, como todos os moradores da rua, pediu um cigarro. Aproveitei para perguntar se trabalhava durante a semana, em um ofício, digamos, menos radical. Sou cozinheiro em um restaurante próximo daqui. Só me monto no final de semana. Penso que inicia sua história, seu filme, seu enredo, na sexta à noite. Depila-se, faz maquiagem, unhas e sai, orgulhosa, certa de sua sedução. É agora uma mulher magérrima e creio que esconde pernas finas em calças com boca de sino. Sapatos de salto altíssimos. Uma camisa de manga comprida, colares, brincos gigantescos e um enorme rabo de cavalo no aplique. Sai por aí, rondando bares e inferninhos como um que dá a frente para o Boulevard e o fundo para a Manoel Barata. Para meu próximo livro, vou visitar esse antro, claro. Aquele centro da cidade é sua Broadway, o lugar onde desfila. Quando a vejo é sempre no sábado, virada, como se diz de alguém que não dormiu. No sol quente das nove da manhã, ela às vezes está jogada na calçada, guardando um mínimo de charme. Em outras, lutando contra o cansaço, a bebida, a ressaca, faz gestos em direção aos homens e motoristas que passam. Palavras doces, convites ao sexo, propostas. Gestos estudados no espelho, super femininos, lânguidos, repito a palavra. Quando a vi, no tal domingo, Blake a empurrou e ela deixou-se chocar com a parede de uma casa, mas lá caiu em uma pose de foto, lembrei da expressão “Strike a pose”. Ri. E no entanto seu olhar encerra uma tristeza imensa. Tristeza de não viver plenamente sua feminilidade? Tristeza do mundo que vive, ante seus sonhos de grandeza? Por saber que no dia seguinte estará de volta a uma cozinha cheia de fumaça e cheiro de alho? O que pensa quando sai, toda semana, montada, rebolando, pelas ruas escuras e perigosas do centro?

Essa falta de tempo me impede de chegar próximo, mais uma vez, resistir à cantada de hábito e perguntar por sua vida, suas crenças, seus amores. O que somos nessa vida sem os nossos sonhos, nossos objetivos? O que nos faz, todos os dias, levantar, tomar uma chuveirada e sair para o mundo? Penso que se dermos tudo o que ela gostaria de ter, roupas, sonhos realizados, um amor, um mundo, ela nem saberia o que fazer. É preciso cuidado com o que sonhamos. Ela estará lá, a travestriste, neste final de semana, novamente.

Nenhum comentário: